Auto-tatuagem, visceralidade e autonomia
foto: Erick Ricco
Comecei o ano de 2025 com dois fins de semana ministrando o curso '“Princípios para Auto-Tatuagem”. Em um aspecto específico, me surpreendeu muito o curso: achei mais intenso do que eu havia previsto.
E, daí, me deu vontade de falar um pouco aqui sobre se tatuar.
Quando eu decidi fazer minha primeira tatuagem, eu ainda não pensava em ser tatuadora. E eu ainda não tinha nenhuma tatuagem, por isso, aconteceu da minha primeira tatuagem ser eu mesma que fiz. Mas eu tinha vontade de tatuar outras pessoas por diversão. Achei que, antes de tatuar os outros, era uma questão moral que eu fosse a primeira a sofrer as consequências dessa decisão totalmente experimental e, assim, comprovar sua talvez não total estupidez. Foi com uma agulha de costura que achei por bem passar numa chama de isqueiro (para supostamente matar os micróbios), um pote de nanquim antigo e uma coragem que só o tédio e a procrastinação são capazes de servir. Ficou meio tortinha, mas é simpática, e tá aí até hoje. A escolha: um coração virado para mim. Era uma tarde de verão e, nesse dia, deixei de entrar na piscina da casa da minha avó, porque já tinha ouvido falar que estoura a tatuagem. O significado: o óbvio mesmo, vocês podem imaginar. Amo ela de paixão.
Acredito que seja possível, mesmo para quem nunca se tatuou, intuir a relevância do ato, mesmo para a escolha mais despretenciosa de desenho. Escolher se implicar numa alteração física do corpo, associada a um elemento gráfico eletivo, entalhado manualmente na pele, (potencialmente) pra sempre. Soa intenso, né? Eu acho que realmente é.
O curso foi dividido em duas partes. Na manhã, passei aspectos mais técnicos como materiais, noções de biossegurança (hoje eu dia eu sei que isqueiro não esteriliza nada) e referências artísticas. À tarde, era o momento de praticar a tatuagem, primeiro na pele de silicone e, depois, na própria. Se, na primeira parte do dia, o clima estava leve, na segunda, ele tendeu a baixar. Todo mundo um pouco mais sério e introspectivo, uma adrenalina pesando um pouco o ar. Tudo bem parecido com uma sessão de tatuagem mesmo, não sei porque me surpreendi: quando comecei a tatuar, tive que aprender a lidar com essa adrenalina. Sendo uma pessoa totalmente avessa a oscilações de ânimo, o que me leva a passar pelas situações mais absurdas de modo a preservar meu corpo de picos de adrenalina, foi uma pequena missão. Entendi como lidar com a carga emocional que é trazida em cada sessão e, para além da intensidade e ansiedade do próprio cliente, com as minhas próprias em ser responsável por performar esse ato de modificação corporal. Foi bonito presenciar ao vivo e poder ajudar no evento pessoal de cada um com a agulha e a tinta. Uns mais rápidos, outros meticulosos, todos imersos com coragem e concentração na técnica e no gesto.
Ando observando algumas escolhas de auto-tatuagens por aí. Uma faca. Uma foice e um martelo. A palavra “sede”. Uma estrela. Um vulcão.
Enquanto penso sobre, nada me parece mais bonito do que isso.
Gosto de imaginar o que levaram a essas escolhas de desenho, elejo dessa pessoa traços selecionados que podem ter a ver com os possíveis significados do desenho, e com a parte do corpo escolhida. Faço um mosaico semiótico que quer vislumbrar qual poética individual tornou essa tatuagem possível, o que conectou a ideia, a vontade, a mão e o furo na pele.
Consigo ver a auto-tatuagem como gesto metafórico para a insistência na vida: vontade de fazer marcas, de não passar como que nada. Anti-alienação. O corpo que modifica o mundo, se modifica, um corpo que diz e faz. Estou aqui, sou alguém, reitero a diferença que faço com o mundo. Um pouco disso, falo através de um desenho.
Visceralidade: um dia eu acordo com uma ideia obsessiva: uma xícara com um olho dentro. Passo vários dias com essa ideia na cabeça. Não sei exatamente se vi essa imagem em algum lugar, ou se criei. Provavelmente vi. Imagens de xícaras e olhos me chamam a atenção. Separo algumas numa pasta do Instagram. Desenho algumas em caderninhos. Hoje não, estou ocupada. No meio da tarde, passo um café com a minha amiga. Nos conhecemos desde os 6 anos. Mas ficamos amigas aos 7. Sempre quis ter o cabelo igual ao dela, e as sardinhas, reflexo primal da minha estima por ela. Admiro principalmente sua originalidade em relação a tudo, principalmente porque sinto que ela formula suas opiniões sustentando uma autenticidade diligente, combinada com um desejo de não se aliar por preguiça às ondas do óbvio. Falamos dos nossos problemas, como em muitos dias. Na conversa descubro algo que não sabia antes, que muda a minha vida, como em muitas dessas conversas. Ela vai embora. Encontro um tempo não previsto e pego agulha e tinta e gravo na minha canela a xícara-oráculo. Só depois fiz a relação. Era uma homenagem aos encontros existenciais servidos na mesa com café.
Autonomia: com os recursos que disponho, a partir dos conhecimentos que julgo pertinentes, na hora da minha vontade e dentro das minha habilidades, executo essa auto-marcação, símbolo indelével de um dia e hora em que desejei alterar meu corpo a meu bel prazer, deflagrando minha autonomia em relação ao ato, e com ele.
Sobre a agenda do curso “Princípios para a Auto-tatuagem”: provalemente teremos datas para BH em março/abril. E novas datas para São Paulo em Junho. Em breve, mais informações por aqui.
Sobre a agenda de tatuagem, para tatuar comigo: vem nesse link aqui.
lindo o texto
Escrever COM o corpo, texto a ser li(n)do.